Transmídia
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coluna

Por um jornalismo que rompa com a transfobia

Cae Vatiero

6.12.2024

Esta é a primeira coluna que escrevo. Chega a ser engraçado finalmente ter um espaço para opinar em um portal de notícias mesmo sendo um jornalista. Só que um jornalista trans.

“Você precisa botar a sua opinião pra fora” — foi com esse empurrão que minha grande amiga e cofundadora da Transmídia, Sanara Santos, me deu que eu cheguei aqui nessas primeiras linhas. Eu nem sabia que seria tão importante e que me renderia tanta autonomia verbalizar palavras que há tanto habitavam em mim. 

A transição me tirou um pouco da coragem de escrever, é preciso admitir dores também. Principalmente escrever sobre aquilo que penso, opinar, abrir a boca mesmo. É muito comum vermos pessoas transmasculinas se dobrando para dentro, se enfiando quase que em um eu-buraco. É como se o peso de nossas palavras não ressoassem em nenhum ouvido por aí. É quase que gritar em um lugar que faz eco e preferem não te ouvir. 

Me parece que escrever também é sobre exercer poder. E o que tenho visto no jornalismo brasileiro é um poder bem certeiro, que tem a mesma cara, gênero, raça e sexualidade. É um jornalismo que ainda não nos permite viver com dignidade e não nos entendeu enquanto população. Ou melhor, pessoas com direito à vida. Ainda que estejamos há tanto tempo aqui, esse poder não nos foi dado. 

É só para pensar: quantas vezes a opinião de uma pessoa trans já te atravessou? Quantas colunas de pessoas trans você já se deparou no seu feed? Aliás, quantos textos de pessoas trans você já leu? 

O jornalismo é um baú antigo que está bambeando, daqueles que não cabe mais nada e insistem em jogar coisas dentro. Se a gente buscar bem lá no fundo dele, numa tentativa de traçar uma linha do tempo, não nos surpreenderia encontrar as mesmas notícias sendo reproduzidas até hoje sobre nós, corpos trans. “A menina que quer ser homem”, Jornal do Recife em 1938; “Em São Paulo, 15 travestis morrem com tiro na cabeça”, O Globo em 1993; “Suplente de vereadora, cantora trans é assassinada de forma cruel no Mato Grosso”, Estadão em 2024. 

A timeline do jornalismo, ou melhor, o DEADline mesmoporque é só sobre morte que sabem falar da gente — segue sendo a mesma há muitos anos. Fica a dúvida, como se reconhecer no outro, se sentir representado ou como acessar informações de qualidade sobre a população trans se a “dita verdade dos fatos” só afirma incansavelmente que a violência é a única história que nos cabe? Critério algum de notícia tem o direito de nos matar todos os dias. 

É por esperançar muito na possibilidade de criar um jornalismo que rompa com a transfobia que eu estou aqui. Enquanto cofundador e diretor institucional da Transmídia, posso afirmar com convicção: o jornalismo que estamos fazendo tem como objetivo primordial impactar as milhares de vidas trans em seu cotidiano. Falar sobre cultura, economia, alimentação, moradia, saúde, educação, lazer, empreendedorismo, arte, política, direitos humanos e tantos outros assuntos que atravessam as nossas vivências do dia a dia. 

A Transmídia nasce de um sonho coletivo. Somos o primeiro site de notícias a cobrir com profundidade as pautas trans, com uma equipe inteira transcentrada, que cansou de ter uma narrativa única sendo reiterada pela mídia brasileira. Chegamos para contar nossas histórias e mostrar que há muito a ser dito. É um sonho que foi regado por muitas mãos até que neste ano a gente pudesse estar aqui. Aliás, que eu pudesse estar aqui escrevendo minha primeira coluna. 

É bonito fazer história. E eu não poderia estar melhor acompanhado. Minha primeira coluna é uma tentativa de aterrar em mim e em vocês um sonho que já se tornou realidade. Também é um espaço para agradecer quem está sonhando junto comigo — Sanara, Hela e Agatha. Esperamos honrar, com persistência, força e vitórias, a nossa memória. 

É só o começo.